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Terça-feira à noite.
Pausa na cobertura das eleições, na redação do relatório de qualificação para o doutorado, na correria do dia-a-dia. Tudo para ter a experiência imperdível de assistir José Miguel Wisnik palestrando. E depois tomar umas cachaças com o Artur Freitas e o Fábio Poletto.
A palestra fez parte de um simpósio sobre 1958, do grupo de pesquisa Futebol e Sociedade. (A página do grupo vale muito a pena ser visitada, com links bibliografia, banco de teses e quetais.)
O convite para Wisnik palestrar veio a partir de seu livro Veneno remédio. O futebol e o Brasil. E de tudo de muito bom que já publicou sobre música popular. O tema era, curiosamente, futebol e música popular.
Wisnik apresentou o futebol como uma linguagem não verbal, assim como a música. Aliás, a única expressão da cultura de massas que não é norte-americana. Os norte-americanos criaram um mundo à própria imagem e semelhança, onde veste-se blue jeans e T-shirt, come-se fast food, faz-se compras em shopping center, assiste-se cinema norte-americano e houve-se música pop norte-americana. Mas ninguém exceto os norte-americanos, empolga-se com basquete, beisebol ou futebol americano.
O futebol destoa do pragmatismo e o produtivismo que marcam a sociedade norte-americana. Seus esportes caracterizam-se por divisões claras do espaço, tempos certos para cada equipe ficar com a bola, objetivos claros a serem alcançados e contagem de pontos decorrente de tudo que se "produz" no jogo. De tal modo que quem produz mais, é mais eficaz, soma mais pontos e ganha o jogo.
Não cabe na mentalidade norte-americana um esporte onde a bola pode ser tomada a qualquer momento, pode-se ir para frente ou para trás, não existe local certo do campo para cada jogador e - heresia das heresias - pode-se jgar 90 minutos e o jogo terminar zero a zero na contagem do placar. "Mas como, dirá um norte-americano - jogaram 90 minutos e não produziram nada?"
O futebol seria, assim, o triunfo do prazer. Um jogo onde o prazer de jogar é maior do que o objetivo da vitória. Como se nota nas brincadeiras informais onde às vezes não há nem gol, só gente correndo pra lá e pra cá atrás de uma bola, sem objetivo que não o prazer do próprio jogo.
O futebol brasileiro seria ainda uma característica mais específica, diferenciada do futebol europeu. Seguindo uma idéia de um texto de Pasolini, de 1971, Wisnik divide dois tipos de linguagem do futebol: o futebol prosa, feito de marcação, de jogadas objetivas em direção ao gol, trajetórias angulosas da bola, cruzamento e cabeceio; o futebol poesia, de muita posse de bola, muito drible, trajetórias curvilíneas. O 2º tipo seria o futebol brasileiro. Uma linguagem própria de negros e mulatos, de trabalhadores que, diferentes de seus companheiros de classe europeu, não têm no futebol um espaço que transcende o trabalho e a disputa política, mas tem, isso sim, no futebol sua expressão máxima, único espaço de manifestação numa sociedade onde não têm vez nem voz.
1958 foi o ano em que este futebol ganhou o mundo. Virou sinônimo de Brasil. Junto com a Bossa Nova e a arquitetura moderna de Niemeyer e Lúcio Costa, foram os únicos produtos culturais brasileiros a se tornarem expressão mundialmente reconhecida.
E a linguagem do futebol é associada por Wisnik a outras expressões da linguagem brasileira na literatura, na música ou na política. Assim, torna-se uma contradição muito salutar um comunista e filósofo de praia como João Saldanha ser o técnico da seleção tri-campeã em pleno regime militar, no tempo da pátria de chuteiras e do "Brasil ame-o ou deixe-o". A partir de 1974 seria o triunfo do militarismo, da objetividade e do pragmatismo no futebol do selecionado nacional, em times comandados por Zagalo, Coutinho ou Parreira. (Um hiato expressivo de liberdade do futebol malandro no período Telê Santana).
As associações são muitas e muito curiosas: Garrincha - Macunaíma. João Saldanha - Machado de Assis (num país onde um mulato livre pode até ser o presidente da Academia de Letras, só não podia era tocar no assunto de sua condição de mulato). Drible - síncopa. Oswald de Andrade: "A alegria é a prova dos nove". Garrincha capaz de driblar o time adversário inteiro, inclusive o goleiro, chegar até o gol e, invés de chutar para dentro, voltar para driblar todo mundo outra vez.
Falo, falo, e não consigo reproduzir nada do que foi aquela noite. Nem parecia que estávamos ouvindo uma palestra acadêmica. Parecíamos estar batendo uma bola com o palestrante, um mágico encantador-encantado pela arte do futebol.
Fico agora doido para passar a correria dos compromissos e arranjar um tempo para sorver o livro. Mesmo antes de lê-lo já posso garantir aqui no blog: certamente um dos maiores jamais escritos.
E saímos eu, o Artur e o Fábio, depois de gostosas risadas, muito satisfeitos. Agora podemos falar ainda mais de futebol, e com o orgulho de estarmos tratando de um assunto acadêmico.
Sobre o mesmo tema, leia também minha resenha do texto "Machado maxixe".
E a resenha do Idelber Avelar para o livro Veneno remédio.
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Um comentário:
Putz, essa eu perdi!!
Mas o livro é obrigatório!
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