Estou atrasado para escrever sobre isso, mas tudo bem. O aniversário foi semana passada, mas o tema continua atual, e continuará por muito tempo.
Dia 9 de maio completaram-se 60 anos da fundação do Estado de Israel. É uma data que merece vários tipos de comemoração.
Os evangélicos fundamentalistas (pleonasmo) comemoram a data como se fosse um sinal dos tempos, uma claro indício de que Deus está "agindo na história". Quem consagrou esta interpretação escatológica da criação do Estado de Israel foi Hal Lindsey em seu livreto The late great planet Earth, publicado nos EUA em 1970, e cuja primeira edição em português saiu em 1973, com o título A agonia do grande planeta Terra. O livro foi traduzido para muitas línguas e vendeu muitos e muitos exemplares. (A edição que pertence ao meu pai estampa na capa o número de 2 milhões de exemplares vendidos, o que se refere provavelmente à soma das edições em várias línguas.)
Neste livro o autor fez um contorcionismo hermenêutico com a passagem do capítulo 24 do Evangelho de Mateus, para dizer que a figueira a que Jesus se referia no texto era o povo de Israel. Este capítulo do Evangelho de Mateus é terrivelmente apocalíptico, e as descrições feitas por Jesus são interpretadas por muitos como profecias para o fim do mundo. Em certa altura do texto, nos versículos 32 a 34, Jesus afirma:
Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós: quando virdes todas estas cousas, sabei que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.
Para Lindsey, o texto previa a recriação do Estado de Israel - que corresponde ao rebrotar da figueira descrito no texto. E a afirmação de que não se passará a geração antes que tudo aconteça foi interpretada como sendo uma profecia de que a volta de Cristo (evento que a escatologia considera o fator desencadeador do fim do mundo) não demoraria mais do que 40 anos (uma geração) após 1948.
Como 1988 já passou faz muito tempo, este livro hoje só presta para ser motivo de ridículo. Apesar disso, as idéias a respeito do Estado de Israel como manifestação da vontade divina - apesar de igualmente ridículas - continuam em voga entre os evangélicos até hoje. Os mesmos evangélicos que elegeram Bush por causa do discurso moralista (anti-aborto e anti-pesquisa com células tronco principalmente) são os que também pressionam por uma política externa pró-Israel.
Este é o tipo de comemoração do Estado de Israel com o qual este blog definitivamente não comunga.
Prefiro celebrar o Estado de Israel como o lugar de descanso de um povo que viveu à margem da cristandade ocidental, vivendo perseguido e fugitivo por mais de 2 mil anos. Lugar de descanso entre aspas: desde que conseguiram criam um estado territorial os judeus nunca descansaram pois desde 1948 vivem em permanente estado de guerra com os vizinhos, sofrendo ataques tanto militares quanto do terrorismo civil.
A mim que sou estudioso do tema da identidade nacional (especificamente a relação que isso tem com a música no Brasil), me impressiona como um povo foi capaz de manter uma identidade nacional por tantos séculos, mesmo sem contar com um Estado ou com um território. Tribos nômades que migraram primeiro da Mesopotâmia, depois passando pelo Egito, os hebreus se estabeleceram na Palestina no século XIII a.C. Constituíram uma monarquia com território definido e capital fixa no século X a.C. Logo em seguida dividiram-se em 2 reinos, o do norte sendo totalmente dizimado pelos assírios no século VII a.C. O do sul - o reino de Judá, que ficou com a capital Jerusalém - é o que subsistiu como povo. São os judeus, que desde o século VI a.C. não tem mais um Estado territorial.
Invadidos pelas tropas de Nabucodonosor da Babilônia, os judeus tornaram-se um povo em permanente exílio. Foi no exílio babilônico que se constituiu o juadaísmo, uma religião de estrita observância das leis divinas, da conservação de livros sagrados e das reuniões para adoração em sinagogas. Foi no período do exílio babilônico que os textos sagrados judeus ganharam forma escrita mais ou menos definitiva - o que os cristãos reconhecem hoje como o Antigo Testamento.
Salvo por um curto período no século III a.C., os judeus nunca mais tiveram um Estado. Aprenderam a viver em permanente exílio. Reconheciam-se pela observância da lei divina e pela reunião nas sinagogas, que se expalharam por todo o Oriente Próximo do Império Persa e por toda a região do Mediterrâneo do Império Romano. Foi assim que por séculos mantiveram sua identidade. Eram uma nação sem pátria, sem Estado. Existiram muito antes de surgir a idéia moderna de nação (todas a nações que reconhecemos hoje não têm mais do que 200 anos de existência).
O que lhes deu esta coexão? Alguém diria que foi a religião. Acontece que, a partir do século XVIII começou a surgir um expressivo contingente de judeus não religiosos. Estes judeus secularizados foram parte importante do arcabouço filosófico da modernidade européia. Judeus que não se reconheciam mais na observância da religião judaica. Que pretendiam se incorporar plenamente à vida secular que surgia na Europa após o colapso da cristandade compulsória. E que nunca foram plenamente recebidos na sociedade européia. Parece que o judeu tinha uma marca - mesmo quando ele mesmo já não se reconhecia como judeu a sociedade laica européia continuou a discriminá-lo como fizera quando a cristandade recusava-se a aceitar os nãos cristãos.
Então a coesão tinha motivos étnicos? Também não. A multiplicadade de etnias que se reconhecem como judeus é notória. Afinal o juadaísmo foi sempre uma religião de descendência - os filhos de Abraão - mas sempre uma religião aberta a receber fiéis de outras descendências e a misturar-se no meio dos povos em que habitaram. Por isso temos pelo menos dois grandes grupos reconhecíveis no judaísmo europeu: ashkenazin (em geral de pele clara e idioma ídiche, espalhados pela Europa Central e do Leste) e sefaradim (em geral de pele escura e idioma ladino, espalhados pelo Sul da Europa e pelo Norte da África e Oriente Médio).
Permanece então um grande mistério esta impressionante coesão de um povo, que manteve sua indentidade ao longo de cerca de 2 mil e 500 anos sem ter território, monarquia, idioma oficial ou característica étnica que pudesse identificá-lo.
No fim do século XIX, parte desses judeus secularizados, inspirados pelos muitos movimentos contra a opressão que surgiram em solo europeu (socialistas de vários tipos, anarquistas, nacionalistas, etc.) começaram a cogitar um Estado judeu. O movimento ganhou o nome de sionismo, e foi a primeira forma de reação coordenada que os judeus organizaram para resistir às violências que lhe foram impetradas em mil e quatrocentos anos de perseguição sistemática por parte dos cristãos europeus. Neste período a perseguição se tornou mais aguda na Europa Central e do Leste, criando ondas de migração massiva de judeus para os EUA e, pela primeira vez em muitos séculos, de volta à sua Terra Prometida na Palestina.
O genocídio nazista foi a gota d'água que levou as potências ocidentais a reconhecer um Estado judeu na Palestina. Era uma espécie de "desencargo de consciência" para com um povo tão durante perseguido em toda a história da Europa. Mas não passou disso - um desencargo de consciência, pois logo em seguida a região da Palestina tornou-se um eterno joguete político das potências, que tentaram agradar ao mesmo tempo o nascente nacionalismo pan-árabe e o recém-criado Estado de Israel. Logo estes dois lados do conflito passaram a dividir-se conforme os dois lados da Guerra Fria: União Soviética e seus asseclas comunistas espalhados pelo globo alinharam-se do lado árabe do conflito. Estados Unidos e seus asseclas capitalistas e fundamentalistas (duas faces da mesma moeda) alinharam-se do lado judeu. Ainda atrpalhados pelo arraigado anti-semitismo que continuou forte na Europa, especialmente entre os católicos.
Depois de resisitr a tudo isso, o Estado de Israel comemora 60 anos. Tornou-se a pátria de todos os judeus. Mesmo aqueles que têm outras pátrias e que nunca foram à Palestina. É hoje o único Estado minimamente democrático do continente asiático. Se conseguir desatar o nó do conflito com os Palestinos de forma negociada será o maior exemplo de pluralidade que o mundo precisa para o século XXI.
É este o tipo de comemoração que anima este blog.
Esta foi, leitor, a minha versão da história. Recomendo fortemente que você conheça também a versão do Pedro Dória e a do André Tavares - com uma importante réplica a um comentarista.
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