domingo, 19 de abril de 2009

Uma história de Deus

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ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

É um livro muito instrutivo, que serve para repensar muito da idéia que temos de Deus. No Ocidente, temos uma visão pautada pelo racionalismo, uma noção de um Deus pessoal controlando a história e usando seu imenso poder para garantir o sucesso de um texto canônico e de uma ortodoxia a ele associada.

O estudo da história do conceito de Deus nas principais culturas monoteístas leva a uma dimensão mais correta dessa noção de Deus como uma das possíveis e existentes.


O surgimento de Deus: do judaísmo ao cristianismo

Para a autora, a noção de Deus único, universal e criador, consolidou-se entre os judeus no exílio babilônico. É uma idéia claramente semita, desenvolvendo-se a partir do Deus tribal dos patriarcas, e chegando a um Deus nacional institucionalizado pelo clero do tempo do rei Josias (séc. VIII a.C.) e do 2º templo (séc. V a.C.). A este Deus “domesticado” pelo interesse clerical, se opôs o Deus revelado, mistério terrível e fascinante que levou compulsivamente ao ministério de pregação de homens radicais como Isaías (o primeiro e o segundo), Ezequiel, Jeremias ou Oséias. Todos atuantes neste período exílico.

Depois a autora estuda como se desenvolveu o conceito de Deus no círculo dos seguidores de Jesus, em trechos que os ortodoxólatras considerariam anátema, pois a autora sugere que Paulo não tenha afirmado a divindade de Cristo.

A noção de um Cristo divino e humano foi sendo elaborada junto com a ortodoxia e o cânon cristãos, bem como a noção de trindade. Aliás, o cristianismo de fala grega e o de fala latina desenvolveram noções completamente diferentes para cada um desses conceitos.

Para mim foi uma verdadeira epifania a explicação que Armstrong fez do conceito de trindade para os pais gregos do século IV, também conhecidos como “os três capadócios” por causa de sua região de origem – na atual Turquia. Para eles, a trindade era forma de ver Deus como mistério absoluto e inalcançável ao homem. Nenhuma de nossas categorias de pensamento ou análise seria capaz de apreender ou explicar Deus. O ministério da trindade era uma ferramenta pedagógica para lembrar o homem de sua incapacidade diante dessa divindade suprema.

No Ocidente, o conceito foi usado às avessas, principalmente a partir de Agostinho. A cristandade latina desenvolveu a noção de que o conceito de trindade era uma dogma, entendendo essa palavra como sinônimo de uma explicação perfeita, acabada e inquestionável. Assim, Deus passou a ser, no Ocidente, algo que o homem pode conceber racionalmente, aprender-apreender-prender. Daí foi um passo às concepções utilitárias de um Deus a nosso serviço.


Alá: o mesmo Deus numa nova revelação

Em contraposição à consolidação da noção de trindade do cristianismo, a autora narra a história de uma nova revelação de Deus. Após o surgimento do conceito de Deus supremo no mundo semita, e de sua adaptação ao mundo helênico mediterrâneo e, posteriormente, ao mundo latino-germânico europeu, agora eram os árabes que teriam sua própria revelação do ser supremo. Alá era, na revelação recebida por Muhamad (Maomé) o mesmo Deus de judeus e cristãos, que agora se revelava diretamente aos árabes, que aliás, eram também filhos de Abraão.

Para mim que sou cristão de longa tradição familiar e cultural, foi de grande importância aprender com o livro de Karen Armstrong o quanto as três religiões de Deus são próximas e interligadas.

A partir desse momento o livro passa a descrever o pensamento teológico nas três grandes religiões com seus entrelaçamentos e influências mútuas, maiores do que eu poderia pensar. No livro aparece então um capítulo sobre “o Deus dos filósofos” e outro sobre “o Deus dos místicos”, que traçam um histórico dos pensamentos teológicos nas três religiões entre os séculos IX e XIV. Tudo que ela escreveu ali sobre o islã e sobre o judaísmo foram para mim novidades absolutas e intrigantes. Algo que preciso investigar mais para entender melhor.

Segue-se um capítulo sobre “o Deus dos reformadores”, que ressalta a necessidade de reformulação nas teologias das três grandes religiões. Os cristãos, que a essa altura já tinham uma divisão bem consolidada entre cristianismo ocidental e oriental, viram a cristandade medieval fragmentar-se em múltiplas confissões. Este processo é analisado superficialmente pela autora.


O Deus dos modernos

Quando o livro chegou a temas e períodos históricos que me são mais familiares percebo quão limitado pode ser um livro que se pretende escrever uma história de 4 mil anos. Imprecisões e generalizações são inevitáveis, ainda mais que a autora se baseia em grande parte em material de segunda mão. Ou seja, como o livro é uma obra de “vulgarização” científica, não leu as fontes ou estudos originais, mas sempre a partir de outros autores. É sempre perigoso fazer história a partir de compilações, mas obviamente é humanamente impossível fazer pesquisa em arquivos para um “recorte temporal” de 4 milênios.

A partir daí percebe-se que a autora segue um “programa” ou “pregação” doutrinária: propor, e defender, a partir da compreensão da diversidade de concepções do divino, uma visão menos restritiva de Deus. Assim, o racionalismo, que se erigiu a partir do século XVIII como categoria máxima e absoluta de compreensão do mundo e como fundamento da modernidade capitalista, teve como efeito colateral uma simplificação da idéia de Deus. Deus passa a ser o totalmente explicável, redutível a dogmas confessionais, aprisionável a explicações “científicas”.

A história de Deus deveria ser, para alguns, a história dogmática dessa ação divina no mundo. Mas para a autora é a história de como os homens construíram suas noções de uma divindade única. A modernidade seria então a história não de homens que lutam para se libertar de Deus, mas para libertar Deus do homem, combatendo essa noção de Deus fruto da mente racional.


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3 comentários:

Leonor disse...

Já entrou na minha listinha de livros pra ler depois da dissertação.
Abraço!

P.S. Ric e Lílian passaram por aqui, foi gostoso.

Tuco disse...

A mais cativante 'explicação' da trindade que vi foi uma descrição da imagem da 'dança de deus' presente (segundo o autor) na mentalidade da igreja ortodoxa russa.

A fonte foi o excelente livro "Uma Ortodoxia Generosa" do Brian McLaren.

André Egg disse...

Legal Leonor,

logo somos nós aí.Termina logo essa dissetação para poder fazer mais coisas.


Tuco,

já vi uma resenha deste livro na Bacia das almas - está na minha fila. Parece que vai na mesma linha, um ponto de vista evangélico mas tolerante com outras confissões religiosas, e disposto a encontrar Deus em outros lugares que não só nas igrejas evangélicas.